Presença indígena Xavante em Barra

Recentemente defendi uma tese de doutorado intitulada: “Da Aldeia para a Cidade: Processos de Identificação/Subjetivação do Indígena na Cidade de Barra do Garças – MT”, no Instituto de Estudos de Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP-SP. A pesquisa se desencadeou dos estudos desenvolvidos no projeto “Arte, discurso e prática pedagógica”, CNPq, desde 2003, sobre presença/frequência indígena Xavante no espaço na cidade de Barra do Garças.

A presença frequente de indígenas no espaço urbano foi objeto exemplar de alocação de sentidos da discursividade que faz funcionar a contradição constitutiva, que a cidade funda, materializando o modo de ocupação negada, ou seja, por mais que essa presença seja real, o que se diz sobre ela, em geral, é no sentido de que ela não deveria existir.

Assim, no batimento conformado no processo discursivo, que é o procedimento metodológico exigido pela Análise de Discurso de base materialista, na qual me fundamentei, busquei compreender como se subjetiva esse sujeito que está e frequenta a cidade, mas que no discurso deveria permanecer na aldeia, voltar a ser o que era ou, até mesmo, morrer.

Tratar essa questão discursivamente é dar visibilidade para a produção da ilusão de objetividade e evidência de uma realidade, de um referente, como se um sentido já estivesse lá: como se o lugar ocupado pelos indígenas nas ruas, calçadas de Barra do Garças, significassem, a priori.

Os materiais heterogêneos que compõem o “corpus” da pesquisa mostram a dificuldade que o discurso do urbano tem em lidar com aquele que ocupa o espaço planejado para outra finalidade, não enxergando a rua como um lugar de transbordamento do social, que reflete e faz funcionar a ordem própria da cidade. Esse é mais um modo de disfarçar os sentidos que produzem e reafirmam a explosão do social no espaço urbano.

Constatei que esse lugar os interpela a subjetivar-se, a significar-se e produzir sentidos; mesmo pertencendo à unidade positiva do direito (todos são iguais perante a lei), o sujeito, quando colocado em relação a ela, identifica-se com o que está fora dela, como aquele que pertence/não pertence ou é um problema, uma questão a ser resolvido(a).

Analisamos, por exemplo, que o preconceito não atinge a memória indígena e que mesmo interpelados pela formação social capitalista, os Xavante concorrem com a formação social indígena, se inscrevendo entre uma e outra formação discursiva no terreno movediço do ir e vir da aldeia para a cidade.

Barra do Garças, embora incorpore, por exemplo, o desenho escrito do nome Xavante impresso em diversos lugares, enxerga o indígena como um fora do lugar, um corpo que não cabe na cidade, e, paradoxalmente materializa uma espécie de naturalização acerca dessa presença/frequência na constituição urbana.

Enquanto sujeito, discursivamente, o Xavante é negado, é alvo de preconceito, “não chega a ser brasileiro”, “não devia estar na cidade”, é coisificado como objeto que “suja, enfeia, entulha o espaço urbano” por um lado, por outro se inscrevem, nesse mesmo espaço, imagens (montagens) estereotipadas, como algumas encontradas no Facebook do Portal do Araguaia emergindo outros lugares de enunciação, como o do empreendimento, o do turismo ecológico. Defendo que a relação do discurso verbal e imagético se dá por composição. Essa noção considera que cada uma das materialidades possui regiões de opacidade discursiva próprias da sua natureza e que impossibilitam o uso da noção de complementaridade, isto quer dizer que a imagem não tem a função de apenas ilustrar. Ela compõe os significados. Assim, no enredo discursivo que costura o processo de identificação do indígena Xavante desenhado/exposto/foto-montado que dá vistas no espaço urbano a um discurso de que ao artista tudo é lícito, penso que ao analista do discurso, também, quando esse se utiliza de um dispositivo teórico para interpretar. Sob o meu olhar, o sujeito indígena materializado pelo desenho da nomeação, pela disposição/exposição de imagens diversas, ainda que negado na presença física real, funda uma cidade Xavante.

Ademais, os Xavante se subjetivam ao tornar pública a sua presença, eles dizem: “os Xavante mudaram, hoje precisa mostrar que a cultura, a língua não morreu”, esse é, sob o meu parecer, um gesto de apropriação do espaço da cidade, que também é o “seu” espaço, é um modo de se dizer diferente, porém, pertencente. Essa presença modificada em relação ao imaginário e afetada pelo modelo da sociedade capitalista, pelo consumo, pelo dinheiro produz discursos conflituosos. É possível afirmar que primeiro foram colonizados pela religião, pela catequese, pela língua, cultura e agora a colonização é pelo capital. Não são reféns de um Deus, mas reféns do homem, do dinheiro.

Ao final da pesquisa espero que os fenômenos marcados discursivamente possam servir para o debate em torno do papel das instituições superiores sobre a responsabilidade na elaboração, por exemplo, de políticas educacionais que contemplem o caráter contraditório do sujeito, que, marcado pela incompletude, anseia pelo desejo de ser inteiro, uno.

Águeda Aparecida da Cruz Borges é professora do curso de Letras do ICHS/Campus Universitário do Araguaia/UFMT, em Barra do Garças-MT, de Língua Portuguesa (2ª Língua) para alguns povos indígenas, como Munduruku, Guarani Kaiowá, Tapirapé, doutora em Linguística pelo IEL/ UNICAMP, líder do Grupo de Pesquisa: “Arte, Discurso e Prática Pedagógica”, (ADP) – CNPq, e pesquisadora do Grupo: “Mulheres em Discurso”, UNICAMP/CNPq – e-mail: guidabcruz@hotmail.com

Fonte: RD News

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *