Passado agroextrativista e a chegada da modernidade

Antigamente os índios que habitavam os cerrados, as matas e as beiras de rio do Araguaia Xingu, com um maior ou menor nível de aldeamento, viviam do agroextrativismo. A sua força de sustentação econômica e de renovação sociocultural tinha como fundamento a agrobiodiversidade, sempre farta, vivenciada comunitariamente e percebida como um dom da Mãe Terra. Como afirma a irmãzinha de Foucault Odile Tapirapé em Urubu Branco: “meio brincando podemos dizer que se tratava de uma sociedade descartável, o menino podia quebrar uma flecha, não importava, tinha outra na mata”.

Os primeiros nordestinos e goianos que foram chegando espontaneamente pela Ilha do Bananal, vinham com seus animais, seus bois, aproveitando a riqueza de pastagens naturais. O vasto território podia acolher a todos, índios e posseiros. Água não faltava, a natureza era generosa. Nas matas, os posseiros faziam suas roças de  toco com a mesma tecnologia que os índios, o fogo. Essas pequenas roças temporárias, de alguns poucos hectares, não tinham outro título de propriedade que o conquistado pelas mãos calejadas daquele que as abria e com isso sustentava a família fornecendo milho, mandioca, arroz, feijão…, base da alimentação.

Exploravam-nas durante dois, três, quatro anos, para depois migrar para outras áreas, à procura de pastos mais frescos, beiras de rio com mais cardumes e matas densas. O restante das calorias obtinha-se da pesca, da caça e da coleta. Os remédios eram tirados das folhas, cascas e raízes. Nesta sociedade pioneira, o dinheiro era pouco e o comércio baseava-se fundamentalmente na troca.

A economia nacional chegou como uma sinfonia em vários movimentos: timidamente nos anos quarenta e com mais intensidade nos anos setenta. A presença do garimpo foi muito pontual e efêmera, foi a força fundadora de Barra de Garças e da ocupação do Rio das Mortes. No entanto, as tão esperadas jazidas não foram encontradas e a economia nacional traçou outros planos para a região: um novo período abriu-se com a fundação da Suia-Missú em 1962 e da Companhia de Desenvolvimento do Araguaia (CODEARA) em 1967. Eram, naquela época, os maiores empreendimentos agro pecuários do mundo, com 696.000 hectares e 370.000 hectares respetivamente. A proposta era abrir áreas para agropecuária extensiva. O latifúndio chegou atraído pelo estímulo das isenções fiscais, concessões de crédito e facilidades para a obtenção dos títulos da terra.

Apoiou-se no contexto nacional de incentivo à ocupação de terras vazias – “Terra sem gente para gente sem terra” – e da ameaça de uma conspiração internacional que pairava sobre a Amazônia – “Integrar para não entregar”. De natureza expansiva, foi implantado por proprietários distantes que se valiam de grilos, capangas e trabalhadores em regime de escravidão para se enriquecer. Na maioria das vezes, esse modelo econômico tinha um caráter mais especulativo e de acumulação ociosa do que de empreendimento. Como resultado, nos primeiros tempos da colonização a região do Araguaia não se parecia em nada com o sonho de modernidade que Getúlio Vargas teve quando sobrevoou o rio pela primeira vez a convite do então governador de Goiás, Pedro Ludovico, lá pelos anos quarenta do século passado.

A segunda metade do século XX testemunhou o parto traumático da modernidade, em parte aliviado com a chegada, tardia e tímida, da democracia. A região assistiu ao encontro entre mundos contraditórios envolvidos na disputa de terras, em uma miríade de conflitos esquecidos onde morreram milhares de pessoas: índios, posseiros, boias frias, colonos e fazendeiros formavam uma Torre de Babel, como tantas outras situadas às portas da Amazônia. O que a região vivenciou nesse tempo é a morte traumática de um sistema e o surgimento de outro mais ousado, cada um com os seus mitos, sua propaganda… Um diálogo impossível em um tempo em que nem sequer o estado ditatorial fazia-se presente nesse fim de mundo.

A força do dinheiro, dos fundos públicos e privados, atraiu investimentos, implantou a propriedade privada, cidades, estradas, vilarejos, trouxe as cercas, campos de braquiária, benfeitorias, tratores, raças melhoradas de boi, frigoríficos, soja, secadores, multinacionais, asfalto, transgenia… Seguindo as diretrizes traçadas pelos planos do governo e do mercado removeram-se as florestas, extraindo as madeiras mais nobres, plantaram-se pastagens exóticas de maior rendimento, e o Araguaia Xingu viu surgir uma das bacias pecuárias que hoje é uma das mais antigas da periferia da Amazônia.

Contudo, e apesar da chegada da modernidade, a sabedoria ancestral da economia agroextrativista ainda se faz presente nos costumes dos índios, ribeirinhos e agricultores. Uma cultura popular que conhece profundamente as frutas, fibras, raízes, remédios, peixes, sementes…, que usa inúmeras palavras, mitos e lendas, tecendo um universo onde a agrobiodiversidade ainda é vivenciada em roças, propriedades, matas e quintais. Basta um olhar nos quintais, uma conversa, um prato na mesa ou uma festa para perceber a riqueza incorporada por um povo que aprendeu a viver na abundancia do Araguaia Xingu.